Kruger Park

O KRUGER, finalmente. O Nelson vem-me buscar às cinco em ponto (a pontualidade é, aliás, uma das suas qualidades). Partimos dali para buscar os restantes clientes, companheiros de viagem nos próximos três dias.

 

Pegamo-los no Hotel Girassol. Um hotel na zona chique, solução condomínio, com casas espalhadas, relva cuidada, tudo extremamente limpo. Por momentos fico a pensar que teremos a companhia de um daqueles casais da classe alta brasileira, tipo novela da Globo. Felizmente, vejo que me engano. É um casalinho jovem, bem simpático e de bom trato. O Ricardo, designer, a Cláudia, a trabalhar em Tete, na conhecida super-empresa de exploraçãoo mineira que, segundo o Toni, está a construir uma quase cidade naquela zona de Moçambique, e, finalmente, a Vitória, filhota, cara chapada do pai, meio febril, e de quem herdarei certamente uma gripe.

O Nelson Cruz aproveita para nos apontar a vivenda de Bassir, pelo caminho, com os seus carros topo de gama a encher o passeio, como uma montra de ostentação de riqueza, chocante nestas partes do mundo. Saímos de Maputo ainda de noite para evitar a confusão habitual. “Arriscávamo-nos a perder duas horas neste inferno”, diz Nelson.

A viagem até à fronteira dura aproximadamente uma hora e meia, em estrada boa, sem problemas. Tem auto-estrada, ea portagem é barata, cerca de cem meticais. As formalidades nas fronteiras, moçambicana e sul africana, são rápidas e escorreitas, mas tal deve-se sobretudo à hora matinal, sete da manhã, a que chegamos. É uma fronteira a evitar em alturas de confusão, tipo feriados, fins de semana e horas de ponta. A seguir encontramos uma típica vila comercial de fronteira, com o nome do rio que lá passa (verificar o nome). É um ponto de afluxo de moçambicanos, um pouco como os portugueses iam a Badajoz para comprar caramelos, antes do 25 de Abril.

Passada a vila, entramos finalmente na Porta Sul, a mais famosa do Kruger, a Crocodile Bridge. Não vejo crocodilos, nem nada que justifique o nome atribuído. Passados poucos minutos, a primeira experiência excitante. Um carro para junto de nós (é habitual no Kruger), uma senhora chama-nos a atenção para uma chita que descansa no meio do matagal. A excitação deve-se ao facto da chita ser um dos animais mais difíceis de avistar, até porque são só cerca de 200, espalhadas pelos N milhões de km2 do Kruger. Trocam-+se binóculos coma senhora simpática do caro ao lado, focam-se os zooms das objectivas. Excitação geral. Só eu não vejo nada. “A cabecinhas, a cabecinha, não vê ali uma cabecinha branca?, alerta o Nelson. Só que o ali é a mais de 300 metros, pelo menos, e no meio do capim alto. À distância, é pouco maior do que uma cabeça de fósforo no meio de uma serração. Impossível distinguir.

A partir daqui começamos a avistar sucessivamente animais de grande porte. Primeiro são as girafas, bem lá no fundo, que atraem a nossa atenção de novatos do Kruger. A Cláudia é fã de girafas e não se cansa de falar da sua beleza e elegância. É um facto, as girafas espantam qualquer um com a sua fragilidade e modo de andar.

O andar de uma girafa é diferente de qualquer outro animal, ao ralenti, sobre enormes patas, parece um malabarista empoleirado em andas. E depois o pescoço, a provar que Darwin estava certo quando dizia que a selecção natural se encarrega de filtrar todas as mutações genéticas que permitem à girafa adquirir um pescoço capaz de chegar às folhas mais tenras, bem acima do alcance dos seus primos, impalas e bois negros, que ruminam cá por baixo. Um hino ao engenho da selecção natural. É impossível não ficar fascinado com um animal daquele porte, tão alto quanto um T.rex mas que inspira o mesmo temor que um bambi. É a Torre Eiffel do mundo animal.

A propósito de bambi, apresento a impala, o mamífero de grande porte mais frequente no Kruger. São a carne para leão, pasto de todas as feras, parecem saídas de um filme de Walt Disney. São às dezenas de cada vez, e permitem identificar os novatos do Kruger: são os que se excitam facilmente ao primeiro avistamento de uma impala; entusiasmo que rapidamente esmorece à medida que vão tropeçando em impalas a cada esquina do parque.

A primeira paragem é no posto “Lower Sabie”. A vista da esplanada é deslumbrante, sobre o rio, com uma mata atrás que mais parece um Jurassic Park, com girafas a assomar entre as árvores e hipopótamos a confundir-se com as rochas. Reparo na técnica de uma girafa que tenta beber do rio. Tem o cuidado de se esconder na vegetação alta, e só o pescoço mergulha na água, como uma mangueira. O Nelson explica-me que agem assim por causa dosa crocodilos. Estes têm o péssimo hábito de aparecer de repente da água, e as girafas são demasiado desequilibradas para fugir; daí o cuidado em manter o corpo recuado, escondido, e usar o pescoço como palhinha.

Impossível ficar indiferente aos pequenos pássaros amarelos, a lembrar pardais. Invadem a mesa e é preciso enxotá-los como moscas, porque eles não pedem licença para picar directamente do prato. É uma luta contra o tempo, e inglória, porque acabam por vencer com o seu amarelo simpático. Difícil resistir.

Continuamos viagem. Esta é uma zona de savana arbórea, que torna difícil a percepção dos animais, que estão ali mesmo, mas quase invisíveis. É uma questão de paciência, e muito zoom na máquina se os quisermos registar. À medida que seguimos para Norte, a savana começa a abrir-se até que chegamos a uma área, dominante a partir daqui, e que se designa por savana aberta e espinhosa. Começa tudo a parecer-se com o “África Minha”.

Paramos no “Montagen”, para uma visita de grande angular sobre a vastidão infinita da savana. Mais à frente, paragem para almoçar no “Tsokwane”. Aqui os amarelos cedem lugar aos azuis metálicos. Pássaros frenéticos, incontáveis, como moscas varejeiras, a competir com outros, de bico grande, tipo tucano. A missão é a mesma, roubar o que podem entre as garfadas rápidas dos viajantes. O Nelson aconselha uma salsicha típica da África do Sul. O nome é também tipicamente Boher, tipo Rolw… qualquer coisa que não cheguei a memorizar. É uma boa salsicha, barata, suculenta e bem apetrechada de molho de tomate e cebola, uma delícia nos ares da mata. Duas Heineken e eis-nos a caminho.

Agora sim, os animais começam a tornar-se visíveis, logo ali à beira da estrada, quase que a pousar para a fotografia. O encontro com os elefantes propicia o primeiro momento digno de nota. Todos os cuidados são poucos, especialmente quando há crias por perto. Os elefantes detestam que lhes entupam o caminho, e quando abanam as orelhas, furiosos, temos de recuar rapidamente; o melhor é manter sempre o motor ligado e o carro pronto a andar. É de evitar ficar entre carros, pode não haver espaço para o recuo e as consequências podem ser desastrosas. Outra regra básica, tipo primeiro mandamento, é nunca sair do carro, nem assomar à janela, porque nunca se sabe quando um felino pode aparecer do nada, rápido, e levar o braço, a mão e a máquina fotográfica, tudo junto. Mais à frente, o primeiro embate do dia. Um rinoceronte no meio da estrada, virado de frente para o carro, é mau sinal. Paramos, o coração a bater desenfreadamente. Será que vai investir? Recuamos de mansinho, mas logo um bronco qualquer nos ultrapassa, acabando por afugentar aquele espécime tão possante, como um tanque. Começa a lição de humildade. Sentimos que somos estranhos num mundo que é o deles, e de que talvez nunca devíamos ter saído. Leva um tempo a habituarmo-nos até que este sentimento de união com a natureza acaba por nos invadir, com o ritmo dos sons da savana e o sol que se começa a pôr, rápido, lá ao fundo no horizonte.

Dormir em Satara

É hora de zarpar para o próximo posto. A segunda regra no Kruger é que não nos podemos atrasar. Os portões fecham às 5.30 e não há tolerância para atrasos. Se ficarmos cá fora, lançam uma expedição em nosso encalço e a multa é impagável. Percebemos no crepúsculo as luzes dos muitos faróis que confluem para a estrada do posto: Satara. O local é apaziguador, pouca luz, bengalows, jantar rápido, buffet, que aqui deita-se muito cedo. A única animação noturna é o grito das hienas que rondam a cerca electrificada. Recolhemo-nos às sete da noite. Nunca fui para a cama tão cedo. O Nelson explica que temos de levantar às cinco da manhã. A razão é simples: é a hora dos leões. Estes detestam o calor e dormem a maior parte do dia. Antes do nascer do sol é a sua hora; se os queremos encontrar terá de ser a nossa também. A ideia é sair do posto, silenciosos, de mansinho, e regressar às 7h ainda para o pequeno-almoço. Durmo como uma pedra. Nem a cama estranha me dissuade, tal o cansaço da jornada. Adormeço ao som da savana, um som que nunca mais esquecerei, das risadas das hienas aos urros dos elefantes e outros sons inomináveis na escuridão. Sinto que há vida lá fora, mas a cerca protectora é o meu anjo da guarda.

 

Kruger, 15 de Julho

 

Saímos de Satara ainda de noite, a luz rasa o horizonte na expectativa de um nascer do sol na savana, o primeiro da minha vida.. O carro roda, devagar e silencioso. Estanca de repente. Olho para o lado e vejo uma hiena que nos observa altiva. Caem imediatamente por terra todos os mitos da hiena suja, necrófila, irritante. A um metro de mim um animal belo, sentado na pose de um Romano, de lado, com olhar penetrante e inquiridor. Pelo limpo, o tamanho de um cão grande, uma imagem que me ficará para sempre tatuada na memória, com uma luz tépida, banhada por uma penumbra avermelhada. A hiena continua imóvel, mas percebo que outra se aproxima, ronda o carro, cheira-me pelo lado de fora, esquece-me e fareja o pneu, consigo sentir o arfar do animal. O Nelson, sabedor, diz-me que os filhotes estão por perto, escondidos numa toca que elas tapam com todos os cuidados do mundo. A nossa paciência acaba por dar frutos. Meia hora depois, aquietado pela nossa imobilidade, o casal dirige-se para a toca, e dela saem duas crias. Mais um desfazer de mitos! Nunca havia visto casal mais carinhoso com os filhotes, que mamam avidamente. Uma lição a não esquecer. Avançamos, ainda não vimos leões, e parece estar escrito que nunca os veremos. Mas Nelson, com olho de águia, chama a nossa atenção para duas pequenas cabeças que assomam lá longe no capim. Objectiva, zoom, e eis que dois leõezinhos nos espreitam de longe. Ficamos cerca de uma hora a observar a beleza traquina daqueles futuros reis da selva. A espera é longa, a expectativa é a de que os progenitores, especialmente as loas, não deixem as suas crias sós por muito mais tempo. A espera é em vão. Acabamos por decidir voltar a Satara para um pequeno-almoço ávido. O resto do dia é um desfilar de zebras, bois cavalo e todo o género de antílopes, que passam a galope para a fotografia. Mas nada de leões. Rumamos ao próximo posto: Olifantes. O boi cavalo chama a atenção pela humildade prazenteira. Não encontrei outro animal que convivesse tão à vontade com parentes de outra espécie. Andam em manadas, é certo, mas também é frequente vê-los sozinhos, misturados com as zebras e, até, com as impalas. Mas, neste caso, estão mesmo sozinhos, tímidos, seguindo o movimento das zebras, como que a buscar protecção na confusão do número; assim sempre têm mais hipóteses se um predador investir. Já com os búfalos, é completamente diferente. Se andam sozinhos estão mesmo sozinhos, e, nesse caso, convém não os hostilizar, porque os machos são conhecidos pela sua irritabilidade e tornam-se, então, nos animais mais perigosos do Kruger porque atacam sem razão aparente. Mas é mais frequente vê-los em grandes manadas, a fazer lembrar os touros bravos de Santarém. Costumam atravessar a estrada e quedar-se silenciosos, a mirar-nos com ar suspeito. Não gostaria de os encontrar numa esquina à noite. Chegamos a Olifantes ao fim da tarde. Ao contrário de Satara, que fica numa planície, Olifantes fica situado no cimo de uma montanha. A vista é, por isso, espectacular sobre o rio do mesmo nome, com o sol a pôr-se. Também aqui a mesma rotina: deitar cedo e cedo erguer. Sexta, 16 de Julho Cinco da manhã, nada de pequeno-almoço. Nelson quer mostrar-nos os leões: é o último dos cinco grandes que nos falta ver. Também não avistámos leopardos, e os leões continuam arrediços. O nosso guia leva-nos de lago em lago na expectativa de ver o rei. Acabamos por vislumbrar lá ao longe, muito ao longe, sete leoas. Andam a rondar uma manada de zebras, mas não parecem muito empenhadas na caçada. Caminham lentamente, esperando à vez pelas que mais se atrasam. Rumamos a sul, de volta pelo caminho de Satara e só lá paramos para o pequeno-almoço, pelas nove da manhã. Tomamos a rota de Tsokwane, via Skukuza – Nilulu. Mais manadas de elefantes, búfalos, zebras e todo o catálogo de animais do Kruger, Leões, nada. Já no sul, pelo meio da tarde, avistamos quatro leões, de novo na distância. A impaciência começa a apoderar-se do Nelson, normalmente a paciência em pessoa. Faltam cinco minutos para chegar a Crocodile Bridge, fim da jornada. E é então que o milagre acontece, e excede todas as expectativas. O Nelson vira-se para trás e pergunta: “Qual é a pessoa de sorte que trago aqui no carro?” Ele não sabe, mas eu sei que sou eu. Comigo, a sorte está sempre reservada para o fim. É o grande final que nos espera, a meio quilómetro do fim. Deparamos com alguns carros parados na estrada. Indagamos: são chitas, lá longe, mas desta vez consigo vê-las, deitadas, lindas na sua passividade. De repente, uma levanta-se e começa pouco a pouco a movimentar-se na nossa direcção. Desato a tirar fotos sempre no temor de que a chita voltasse as costas e desaparecesse na bruma do fim da tarde. Mas não, o milagre estava mesmo reservado para nós. A chita, o animal menos visto do Kruger, vem na nossa direcção, seguida pela companheira, que entretanto também se levantara. O Nelson está eufórico. Em 12 anos de Kruger nunca vira nada assim. Não se cansa de repetir a mesma história “o Kruger paga aos visitantes que consigam vislumbrar uma chita, tal a raridade do acontecimento. Neste caso, a raridade é ainda maior porque elas se dirigem para nós, atravessam a estrada, passeando-se, lentas e esbeltas, entre os carros. Uma delas chega a parar à espera da que se atrasou. Só se ouve o disparar das máquinas, e elas, qual modelos numa passarelle, sobem num tronco deitado no outro lado da estrada e pousam para a fotografia. É inacreditável, mas as minhas fotos aí estão para o provar. Um pequeno percalço: já não tinha filme na máquina, mas consigo 10 segundos. Fechamos com chave de ouro! ? Carlos Catalao

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