MAPUTO

TODA A GENTE TEM UM CÉU. O meu é Moçambique, um sítio de que tinha saudades muito antes de lá ter estado. Era uma saudade alimentada de outra, essa sim verdadeira, a de um velho amigo. O João da Beira regressou a Portugal estava eu a acabar o Liceu, e trazia aquele ar de sonho interrompido, próprio dos retornados. É sua a culpa de me encontrar agora, entre asas, a retomar-lhe o sonho. Voltou lá uma última vez. Tinha deixado em Moçambique o amor da sua vida, uma Madalena, de Vila Pery. Roído pelas saudades, retornou a Moçambique nas vésperas da independência, num avião certamente vazio, daqueles que só se enchiam à volta. Dois meses depois estava de novo em Lisboa. Mas a Madalena tinha-lhe ficado com a semente e não tardaria a retornar, ela também para sempre. Praticamente assisti ao parto.

 

Maputo, 28 Junho

 

Maputo, vista de Katembe © Carlos Catalao

 

Maputo, 29 Junho

 

ISTO FOI FEITO PARA MIM. Vassouras de bruxa, das grandes, penteiam a pista do aeroporto. Sinto o sol de inverno queimar-me a nuca com um calor gentil, quase sexual, e de brilho promissor.

 

O Toni foi-me buscar, de caminho para a Escola Portuguesa, onde trabalha. Encontro lá a Teresa. Planeio uma surpresa ao marido, António Cabrita, poeta. Deixo o Toni e vou-me arranjando sozinho. Decido ir a pé até à baixa de Maputo. Enfim, só, no meu sonho real. Disparo baixa abaixo, como quem foge de desconhecidos na direcção do desconhecido. O passo, de corrida, é atrapalhado pela turbulência do passeio, salpicado aqui e ali por pedras da calçada e vendedores de baqui. Reparo que o passeio do outro lado da rua é mais largo, limpo e deserto. Feita a troca, acelero ainda mais, intrigado por ser o único peão daquele empedrado. Não tardo a ser interrompido por um soldado que, ainda lá ao longe, me grita prá lá prá lá prá lá. Mas é o gesto, impaciente, alongado pela metralhadora, que me faz perceber que é para o outro passeio, o apinhado, que tenho de voltar, e já. Ao passar mais perto percebo que é a sentinela do palácio presidencial. Estou esclarecido quanto a passeios.

Horas depois já conheço os caminhos, da Mao-Tsé-Tung à Karl Marx, e até ao Piripiri, na famosa esquina da 24 de Julho.

A primeira 2M. Estranho que ninguém me queira vender nada; deve ser porque sou mais feio do que eles.
A segunda 2M. Já me vou arranjando sozinho, como em casa. A terceira 2M. O vermelho já compete com a noite e os piscas dos carros, desfocados, tudo meio embrulhado em marfim e ébano, um telefone a tocar, ninguém atende, é para mim, é a Teresa, a dizer que o Cabrita já chegou. Na mesa à minha frente um espectáculo à portuguesa: dois tipos atraem uma multidão que desdobra baquis como tapetes num sulk. Ninguém parece notar a minha presença, talvez porque me sentem seu?

Reconforta-me pensar que talvez me vejam como um filho da terra. Acabei de chegar, e já me sinto Moçambicano. Resguardado, assisto como um veterano a quem ninguém diz nada, pede nada, oferece nada. Entretanto, a cena está prestes a azedar. A multidão de vendedores debanda à frente de um polícia chamado para o efeito. Resta um vendedor, persistente, que lá terá as suas razões para não arredar pé. Não levas? Então eu ofereço. Mas nem assim tem sucesso.

Atrevo-me a apanhar um táxi, de noite, directo para casa do Cabrita. Sete andares mais acima, apareço-lhe à porta. Pasma. Acabamos a sair a um tasco na noite escura.

 

Maputo, 30 Junho

 

ESTA NOITE SOU CLIENTE DO GIL VICENTE, o farol da cena musical laurentina. Na mesa, Toni e Tina. Ela, olho verde na pele escura, ele, olheirão preto, cara de sexta. Trazem um casal amigo, que não consigo identificar, professores os dois, também, ele de História. Com eles um parente afastado, José Mendes, filho da casa, músico há muito reformado. Estamos aqui a seu convite.

Toca uma banda de regeea, Ras Abel, um músico Etíope radicado nos Estados Unidos. Onde param os músicos moçambicanos? pergunto.

Falam-me de marrabenta, o som da nação. Dizem que está para Moçambique como o samba para o Brasil ou o fado para Portugal. O professor pensa diferente. Didáctico, explica que se trata de uma invenção do regime colonial. Durante a guerra, quando choviam críticas da ONU, dava jeito mostrar uma face branda, lusotropical, para ganhar os corações dos moçambicanos.
É aqui que o incómodo do músico se torna visível. A marrabenta, “a nossa música”, cúmplice do estado colonial é mais do que Mendes consegue aguentar. Fica a impressão de que vai explodir. Mas engano-me, já não é a primeira vez que têm esta conversa; as posições estão feitas, são conhecidas de todos, menos de mim. Sinto-me o único espectador de uma peça batida. Mendes concede que a Rádio Clube de Moçambique, estação do regime, passava muita marrabenta, e que a aproveitavam para branquear o colonialismo. Mas que aquela música é a essência de Moçambique, que ninguém duvide.

Segundo lhe contou o próprio João Domingos, o melhor cantor do género, a origem do nome é mais ou menos esta: um dia, um mineiro de regresso da África do Sul demorou-se pelos clubes dos Comorianos, a grande animação dos sábados na Mafalala dos anos 50. Costumava actuar uma banda do Xai-Xai, com um solista, o Napita, que não deixava passar uma noite sem rebentar as cordas da viola. O mineiro, impressionado, só queria que tocassem aquilo, só que aquilo era majicá, sem letra nem nome, e ele, sem saber o lhe chamar, insistia: “aquela que rebenta”, “aquela que rebenta.” A partir daí passou a pagar-lhes em cerveja, e por isso os guitarristas sempre que o viam gritavam “olha o rebenta.” Foi assim que a majicá começou a ser conhecida por marrabenta. Parece anedota.

Li em Craveirinha uma história diferente, mas com um elemento comum: Jaime da Graça Paixão – o Zagueta, o Fred Astair de Xipamanine, boxeur, bom de bola, boémio e amante. Quando se atirava para a pista, instigava as parceiras gritando-lhes: “Rebenta!”, “Rebenta!.” O incitamento acabou por pegar. Juntaram-lhe o prefixo Ronga ma, e assim nasceu a marrabenta.

Mas não será o nome o que mais interessa aqui. A marrabenta tornou-se o símbolo da nação porque é filha de ritmos tão antigos como a escravatura, espalhados por áreas muito afastadas, mas sempre dentro das fronteiras actuais de Moçambique: da chinga, no Norte, à zucuta, cá mais para o Sul.

O que é me está a interessar mesmo é perceber como é que música urbana, ligeira, se transforma em acção política, como parece ter sido o caso. José Mendes demora-se a olhar cerveja ainda cheia, com os olhos virados para dentro. Naquela altura, lembra, não havia sindicatos, partidos políticos para a militância. Eram proibidos, tal como em Portugal. Aqui foram as associações culturais que acabaram por fazer o papel dos sindicatos. Gente como Ricardo Rangel, José Craveirinha, Noémia de Sousa e tantos outros frequentavam o Centro Associativo dos Negros de Moçambique e a Associação Africana, faziam oposição aos Portugueses e à música estrangeira, puxavam pela música moçambicana até transformar músicos de baile, de rumbas e sambas, em músicos empenhados na causa da independência. Foi assim com João Domingos ou com Moisés Ribeiro, os mais populares cantores de marrabenta.
Mendes conta-me tudo isto já no balcão. O entusiasmo regressou-lhe em força, agora que o casal ficou lá mesa. Faz lembrar aqueles espiões, sempre a virar-se para trás enquanto falam. Não sei se será tique da clandestinidade ou, simplesmente, medo de ser apanhado em falso.

Mas o que lhe gostava mesmo é de saber onde estão hoje esses músicos moçambicanos. Mendes fala como um dique rasgado. Ainda há muita dor naquele monólogo. Decido deixá-lo apreciar o resto da cerveja em paz.

 

Maputo, 1 Julho

 

A MANHÃ ACORDA CHUVOSA. Cabrita garante-me que só dura um dia. Acertou. Acompanho-o à Direcção de Emigração, com o motorista, o Gilberto, tipo calado e direito.

Maputo, uma ladeira mal-talhada / carro preto colorido / 4 vezes 4 , no pó luzente.

Cabrita leva-me a comer um “porquinho”, acompanhado por 2Ms tão incontáveis como o que nos contamos um ao outro. O porquinho é um petisco tão bom que o Cabrita não lhe pode pegar, o infeliz.
Vamos a casa de um editor e livreiro, Capão de seu nome, que me dá o número do Nelson Cruz, o guia ideal para me levar ao Krugger.
Seguimos até à famosa estação do caminho-de-ferro de Maputo, a rainha dos postais, peça antiga e quase despovoada de comboios. Está lá uma exposição de fotografia:Revisitar Ricardo Rangel, organizada pela Kulungwana, Associação para o Desenvolvimento Cultural, aberta de 10 de Junho a 15 de Julho, a assinalar “um ano que se completa depois que Ricardo partiu”, lê-se no folheto, assinado por Luis Bernardo Honwana.

 

Maputo, 2 Julho

 

Alunos 3º ano do ECA, Curso de Teatro. Maputo,2 Julho 2010 © Carlos Catalao

DIA GRANDE, dia de teatro.
Conheço o Ciro, pintor. Num folheto do Consulado Geral de Portugal em Maputo, a propósito da exposição colectiva Intersecções, no ano passado, lê-se: Ciro Jorge Pereira nasceu em 1957 na cidade do Porto, Portugal. Iniciou a sua actividade como artista gráfico em 1975. Trabalhou nos ateliers “Praxis” e “Dimensão 6”, em Portugal.
Frequentou o Curso de Formação Artística da Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa. Reside em Moçambique desde 1980. De 2005 a 2007 foi Vice-Presidente do Núcleo de Arte, em Maputo. Está representado em colecções públicas e privadas em Moçambique, Portugal, EUA, Zimbabwe e África do Sul.

Vou assistir ao ensaio final da peça de exercício de fim de semestre do 3º ano do ECA, Curso de Teatro, no Centro Cultural da Universidade Mondeleane, logo ali junto ao “Mimos”, na esquina com a Vladimir Lenine. Tenho a felicidade de filmar toda a peça, Lisístrata, de Aristófanes, sobre a greve do sexo.

 

Ensaio geral, no Centro Cultural da Universidade Mondeleane, 2 Julho 2010
Lisistrata de Aristofanes – Curso Teatro ECA Maputo 2010 from  © Carlos Catalao on Vimeo.

 

Assistimos, mais tarde, ao jogo da desilusão do Brasil, 2 – 1, ganha a Holanda. A malta no café Zambeze exulta com esta humilhação, como se pode ver no video a seguir:

 

Café Zambézia, jogo Holanda-Brasil. Maputo, 2 Julho 2010
Maputo | Noite from  © Carlos Catalao on Vimeo.

 

Saio dali com o Toni, para casa da Tina para ver outro jogo, o do Gana com o Uruguai.
O jantar está óptimo, especialmente a mboa, mas é triste ver o Gana falhar o penálti no último minuto.
Coincidência: Tina conhece bem o Nelson Cruz e telefona-lhe a marcar encontro.

Acabamos a noite no Términus, o bar da estação.

 

Maputo, 3 Julho

 

Almoço fantástico na casa de Ciro. Conheço Beatriz, viúva de Ricardo Rangel, fotografo moçambicano incontornável, morto há um ano atrás. Coincidência: vi uma exposição de Rangel na quinta-feira. Não imaginava que lhe iria conhecer a mulher tão cedo.
Está também Maria de Lurdes Torcato, jornalista e editora.

Fala-se sobretudo de fotografia, especialmente de José Cabral. Talvez tenha a oportunidade de o conhecer um dia destes. Fala-se também de Kok Nam e Sérgio Santimano.

Acabamos a noite, eu e Cabrita, a beber cervejas num tasco e a discutir a materialidade da alma.

 

Maputo, 4 Julho

 

DIA CALMO, ando a passear pela Baixa de Maputo. Almoço: muxuxu de galinha, com Toni, num tasco frente à Coop, ao fundo da Vladimir Lenine.
A noite é animada no “Palma de Ouro”, Feira Popular, sítio engraçado, música, comida e bailarico noite fora. Estão Tina, Toni, Tété e Nelson Cruz.
Combino com Nelson Cruz a viagem ao Krugger.
Talvez tenha perdido, ou me perderam, o telemóvel. Preciso cuidado, que estes gajos são muito rápidos, alertava o Cabrita no outro dia. E, ao que parece, acertado.

 

Maputo, 5 Julho

 

O TONi SAI PARA A EPM, e eu vou-me, Mondeleane abaixo, até a um café na esquina com a 24 de Julho, logo ao lado do Piripiri, onde estou a escrever estas linhas, a repor de memória os caminhos que tracei desde Quinta, 1 deJulho.
Posso ter trocado um ou outro dia, um ou outro lugar.
Estou a ver se me decido a almoçar ali no “Monte Alentejano”, o melhor restaurante português de Maputo, Cabrita dixit.
Nelson Cruz acaba de ligar. Falo com a Patrícia, uma amiga dele que me está a organizar uma viagem à ilha de Inhaca.
Parto amanhã mesmo, às 15 horas, vamos a ver no que dá.
O voo são três mil meticais, mais 250 dólares para o hotel, transferência e jantar incluído. Todos me dizem que parece um preço bem especial.

Decido-me por um “porquinho”. Volto ao tasco, já habitual, e deixo-me engolir pela tarde. Fica a imagem de um pinheiro a dançar ao ritmo da música que se escapa da janela.
Encontro-me com Cabrita no Zambeze, café na esquina da Mao-Tse-Tung com a Vladimir Lenine.; um lugar que se está a tornar um poiso de eleição.

Entretanto chega o famoso José Cabral. Mais copos e vamos acabar no Coqueiro, na Feira Popular, já sem Ciro. Acabar é mesmo a palavra: quase somos expulsos, últimos clientes.
Cá fora, na Baixa, duas da manhã, sem vivalma, nem táxi, nem nada, e já ninguém se aguenta muito bem nas pernas. Meto conversa com um puto nas escadas de um prédio. Lá me arranja um táxi. Distribuo Cabrita e Cabral pelas respectivas casas.
Uma noite em cheio.

 

Inhaca, 6 Julho

 

Ilha de Inhaca, Maputo, 6 Julho 2010 © Carlos Catalao

 

LEVANTO-ME, e vou trocar dinheiro numa agência na Mao-Tse-Tung (42 paus o euro).
Estou a escrever, como já é habitual, na esquina da Julio Nereri com a 24 de Julho. Talvez vá comer um bife ao Monte Alentejano, preparar as coisas e partir para Inhaca. Pensando melhor, acabo trocando o bife por um muxuxu, não vá o estômago trocar-me as voltas no avião. Decido-me pelos lados da Coop, com uns copitos de tinto para fugir à cerveja.

De volta a casa, preparo a mochila. Taxi para o aeroporto (250 meticais).

É bom voltar ao aeroporto. À chegada não tinha descoberto a varanda a-ver-aviões, com vista para a pista, vazia, com excepção de um avião pequeno e de uma avioneta – Not very busy.
Ligo à Patrícia, que vem ao meu encontro, simpática, eficiente e sem muita conversa. Indica-me o balcão para comprar o bilhete (3.000 meticais, como prometido), na African Transairways, tudo castanho, meio lento, mas eficaz. Uma hora depois estou num avião de uma dúzia de lugares. Quinze minutos mais tarde, estou a aterrar em Inhaca.

 

Voo de Maputo para Inhaca,6 Julho 2010 © Carlos Catalao

 

A ilha de Inhaca. Aqui, sim, um dos choques mais agradáveis da minha vida. Tudo deserto, um silêncio intensificado pelo contraste com o ruído de Maputo dos últimos dias. O aeroporto tem o tamanho de um contentor. Aguarda-me uma loira, branca, Vânia Pinto, assistente do director do Hotel Pestana. Faz-me subir para a parte de trás do jeep, coisa antiga, com uma lona. E arrancamos pela única via, picada, de areia. Não há um palmo de estrada asfaltada nas proximidades. Um sonho.

 

lha de Inhaca. Maputo,6 Julho 2010 © Carlos Catalao

 

Quando chego ao hotel, um ressort lindo, fico artordoado durante umas boas horas. Rio, choro, tanta beleza faz-me desatar a telefonar a toda a gente, de Maputo a Portugal, na ânsia de partilhar o momento, e como que a beliscar-me para me certificar de que é tudo real.
Corro à praia atrás do Sol que foge mar adentro, a disparar fotos para tudo o que mexe. Uma euforia intoxicante que só pára ao jantar, buffet, dois copos de vinho e o melhor caril de camarão de sempre. A alegria acaba por se temperar com a tristeza de constatar dois mundos, o das crianças brancas, habituadas a estes paraísos, e as outras, como as que vi hoje mesmo pelas ruas Maputo. Difícil resistir ao contraste.

 

Pestana Lodge em Inhaca. Maputo,6 Julho 2010 © Carlos Catalao

 

Acabo a noite a escrever um texto piegas. Talvez mostre ao Cabrita, ou talvez vá directo para o lixo. Durmo, pela primeira vez, numa cama com mosquiteiro, e adormeço depois de assistir à semi-final: Uruguai, 2 – Holanda, 3.

 

Inhaca, 7 Julho

 

Ilha de Inhaca. Maputo,7 Julho 2010 © Carlos Catalao

Faz uma semana que estou em África. Acordo cedo, mais calmo, mais realista, mas ainda intoxicado pela beleza do lugar. E o som! O som que nunca tinha escutado, mesmo depois de uma semana em África. Pássaros que cantam como tambores, compassados, musicais. Entendo agora muita da inspiração da música africana. As cores são luminosas, laranjas, verdes gordos, e o azul do mar. Não consigo afastar-me da beira da água por muito tempo. Ando por aqui e ali, sem tino nem destino, até me sentar a escrever estas linhas.

Saímos às 15h30, de regresso. Como será? Começa a chover, vai ser um regresso diferente, no aviaozinho.
Pago o Pestana Inhaca Lodge. Ficou em 120 dólares, jantar, pequeno-almoço, transporte incluído, como fora prometido.
A volta é rápida, no meio de nuvens negras com laivos de fogo do sol que se põe. Sabe bem regressar a Maputo com jeito de quem já domina os caminhos, como criança que se aventura sozinha pelas ruas, cheia de si e confiante.

 

Regresso de Inhaca a Maputo,7 Julho 2010 © Carlos Catalao

 

Apanho um táxi, 300 paus, desta vez mesmo depois de ter insistido com ele em como não lhe daria mais de 250. A gente faz trezentos, diz, em tom de não se fala mais nisso.
Deixo a mochila em casa, corro ao Zambeze, o ponto de encontro do costume.
O Ciro já lá está à minha espera, e arrancamos para o jantar no Choupal, com um leitão assado, inteiro, na parte de trás do 4×4. Choupal é um bairro, assim-assim, localizado junto à periferia mais pobre ainda de Maputo. Choveu, é noite, lamaçal e trânsito são indistinguíveis um do outro; tudo enegrecido ainda por um apagão infindável como a fila de trânsito. Levamos cerca de uma hora para fazer 10 km; pela Joaquim Chissano acima, passamos o bairro de Benfica, por aí fora. Noite de semi-final: Espanha-Alemanha.

Chegamos ao tasco, alugado pela cooperativa a uma amiga de Ciro, que entretanto ficou doente (2 AVCs). Os amigos estão a tocar a coisa para a frente, e a Eugenia está a tomar conta. Comemos o leitão inteirinho, eu, o Ciro, um tal de Marçal, escritor, mais o Noel, pintor (deu-me um cartão pintado e escreveu lá o nome e o telefone) – uma versão interessante de cartão de visita. Tem também o Enfermeiro, de que não me recordo o nome. Tudo malta porreira, campeões da bebida, mas sem mau vinho – aliás , só bebem wiskey e gin. Eu e Ciro ficamos pelo vinho, Chileno.

O barracão, que não tem outro nome, só tem a mesa preparada para o efeito, do leitão, claro. A única chatice são os mosquitos. Entram livremente, atraídos pela luz e, talvez, pelo cheiro do leitão.

Aprendo aqui um truque moçambicano para afastar mosquito: fazer um pavio, bem enrolado, com um guardanapo e pôr a queimar no gargalo de uma garrafa vazia. Fazemos vários, dois ou três debaixo da mesa. Mesmo assim, o Ciro, sempre prestável, manda comprar um repelente de mosquitos (coisa boa, natural, diz ele). Vou trazer de volta a Portugal, como recuerdo.
Passamos do leitão para a sala. Chove lá fora, pouco, mas ainda assim suficiente para impedir que fiquemos cá fora a ver o jogo à luz das estrelas do hemisfério sul. Resta-nos ficar na sala a ver o jogo, grande jogo, vitória merecida da Espanha (1 – 0); toda a gente torce pela Espanha.
Acabamos a noite a dar uma boleia à Eugenia até casa, num bairro que nem vampiro se atreveria a entrar à noite.

 

Maputo, 8 Julho

 

ACORDO CALMO, já habituado ao barulho das ruas de Maputo. Pequeno-almoço: café, leite e torradas, aqui no café do costume, no fundo da Mondeleane, quase a tocar a Julius Nereri. O nome do café: “Restaurante abfc”, coisa simpática e decente.[/dropcaps]
Entretanto o Cabrita já me telefonou: hoje é dia grande. Estou indeciso entre o “porquinho” do costume e uma incursão no tal bife no Monte Alentejano.

Acabo por me decidir pelo uma boa caminhada. Boa, calma, de quem cá está há uma semana. Não mais o turbilhão, apressado, a satar buracos, lancis, entre carros e gente. Não, agora uma boa. Opto por descer à Baixa por uma paralela à Mondeleane, entre esta e a 24 de Julho. Passo pelo Instituto Comercial de Maputo, sempre para baixo, guiado pela visão da baía lá ao fundo, entre as palmas do coqueiral. Rua mais calma, menos lixo, a temperatura a rolar os 25 graus, para menos com uma brisa e um sol quentinho e sexual a aparecer entre as nuvens, brancas, mas cinzentas também. Parece uma manhã de domingo na Madre de Deus, em Lisboa. Passo por vários hotéis, Monte Carlo e outros, e desemboco na 24 de Julho. Ainda não a tinha percorrido. O Cabrita tem razão, é a mais bonita de todas, com o arvoredo, as acácias, ainda não vermelhas, e os jacarandás, também ainda não lilases.
Cruzo a esquina da Lenine com a 24 de Julho, deparo-me com uma esplanada convidativa: o Djambu.

Fico aqui mesmo, peço uma 2M e escrevo estas linhas: são 12h00 em ponto, 8 de Julho, um lindo dia, para recordar.
Subo a Vladimir Lenine com o nariz no muxuxu. Pelo caminho vêem-me à cabeça estes decassílabos:

Maputo pede olhar de mosca
Para cima para não bater na árvore
Para baixo para não ir no buraco
Para o lado para não ser atropelado
Para a frente que sempre tem gente.

Estou no Zambézia, cada vez mais o meu poiso. Sinto que estou a atingir o planalto nesta minha trip. A turbulência virou consciência, o pó está a assentar e tudo está mais claro. Sinto que estou preparado, finalmente, para a hóstia da Africanidade. Agora sim, sinto-me daqui.
Cabrita acabou de chegar. Leio-lhe o acabei de escrever. Flui, tem ritmo, tem imagens, diz. Se malhar na escrita todos os dias, 400 ou 500 palavras por dia, daqui a dois anos consigo escrever um bom livro. É muito generoso, este Cabrita. Diz-me ainda: “Não há grande diferença entre escritores e as outras pessoas. A diferença é que os escritores escrevem.” Simpático, mas espero que sincero também.

Continuamos na conversa a caminho do Elvis, um bar à europeia, perto da Coop, um sítio desenhado para nos fazer esquecer que estamos em África.

De volta a casa, combino com o Toni alugar um Jeep e ir para o Norte, três dias, até Inhambane, a Inhambane que não posso falhar. Durmo mais descansado, a sonhar com África.

 

Maputo, 9 Julho

 

ESTOU NO ABFC à espera de telefonar ao José Cabral, que vai comigo a Katembe, no outro lado do rio. Veremos. Hoje é sexta, dia grande, mas sobretudo noite grande.
Começamos por apanhar um “amarelinho”, uma experiência que me andava a tentar desde que cheguei, e que acabou por se revelar à altura das expectativas.

 

De “Amarelinho” até ao ferry para Katembe, com José Cabral,9 Julho 2010
katembe Maputo 2010 from  © Carlos Catalao on Vimeo

 

São uns táxis simpáticos, tipo lambreta, que surgem cada vez mais como alternativa ao táxi tradicional, com a vantagem de serem mais arejados. São ruidosos, mas ao menos não cheiram tanto a gasolina como os outros. Recomendam-se. A viagem até é agradável, Baixa abaixo, Clube de Vela, até ao ferry. Temos a sorte de apanhar um que parte “dentro de três minutos”, alertam-nos na bilheteira. Afinal é um quarto de hora.

Katembe é África. Percebe-se logo à saída do ferry: as tais cores, o bombar dos altifalantes nos tascos. “Bem-vindos ao nosso mundo”, letras gordas, amarelas, em chapa vermelho choque. Mulheres carregam a cabeça, como formigas, caixotes, sacos, amendoim. Os homens não. Jogam bilhar, falam até se cansar, cansados de falar. Gente que vai, gente que vem.
As primeiras 2M do dia.

A luz do meio dia borra tudo, e Maputo parece Manhattan do outro lado, tão ali que o barulho da cidade concorre com o rap deste lado. Na parede lê-se, em cores diluídas pelo sol: “Catembe livre de HIV SIDA”. Não resisto a tirar o boneco para a minha série de carros com grafitty e legenda.

Uma africana negríssima, filho no colo, em pé junto à mesa. Pedimos que se sente, se quer refresco. Mas conseguimos entender-nos, o português dela é escasso, certamente não aprendido na escola.
Mando-me com o Cabral à procura de um chapa que nos leve ao Diogo, restaurante conhecido pelo camarão grelhado e pelas fotos de Machel nas paredes. O tipo do chapa pede cem paus e o Cabral manda-o à merda, assim mesmo, com todas as letras. Decidimos ir a pé, pela beira da água, populada de meninos e de homens cansados de falar, esticados a lagartear ao sol. Hei Joe, onde fica o Diogo? Na palmeira ali, lá longe, tá vendo? Não valia os cem paus mesmo. O Cabral tem a seu favor a razão de 58 anos de Moçambique, filho da terra e filho de Moçambicanos.
Comemos uma dose camarão tigre, seis para cada um, 250 paus cada. Nada mal, regado de limão, batata frita e muito picante. E cerveja, até que a luz vira cálida a rosear.

Voltar para o cais. Mais cerveja e, desta vez, o regresso num barco bem pequeno, bandeira de Moçambique, lotação esgotada, cinco paus e uma criança linda com um penteado colorido como nunca tinha visto. Registo tudo, filmo, fotografo. Ainda não tinha arriscado uma foto em Maputo desde que o gajo no chapa me ameaçou na primeira tentativa dias atrás. Agora é a vingança. Afinal tenho comigo um dos melhores fotógrafos de Maputo. É aproveitar. O Cabral, claro, tira uma única fotografia, de um cartaz do presidente, colado e recolado com outra publicidade, uma verdadeira montagem de pop arte ao natural. Fiquei com inveja de não ter reparado.

Já em Maputo, trocamos conversa com o primeiro táxi. Tipo engraçado, Rodrigo, com uma máquina infeliz. Começa a discussão porque ele furou a fila de taxistas, que reclamam aos gritos. Não lhes vale de nada, acabam por perdoar Rodrigo, e lá vamos, cem paus bem negociados, com o Cabral a xingar o pobre toda a santa viagem, troca espirituosa todo o caminho. Também aqui filmo tudo. Esta minha mania de filmar viagem de táxi, como já tinha feito com o amarelinho e com outro, dois anos antes, que me levou do Cairo a Gisé, pelo submundo da cidade antiga.

Paramos em frente ao Centro Social dos Professores, poiso habitual de toda a gente menos dos professores; eu pelo menos não vi nenhum. Tudo gente do Cabral, fotografo, marinheiro, empresário, jogador de hóquei, da selecção de Moçambique no campeonato em Portugal de 1972, conta ele. Eu acredito, os outros confirmam mas pedem que não dê seca ao recém-chegado. Preciso investigar isto, chama-se Simões, deve haver registo. Esta gente bebe cerveja até cair. Vou-me aguentando, afinal tenho uma reputação a defender. Penso que me estou a safar, porque estou mais sóbrio que o Cabral.

Acabamos os dois no Piripiri. Aí, surpresa, uma mulata me acena; demoro a reconhecer. É uma cheinha que tinha conhecido no Choupal, no grupo do Ciro, na noite em que Espanha humilhou os arianos. É ela. Na mesa uma prima do Cabral, já não se viam há muito tempo. Vamos lá para fora, o Cabral e eu. Peço um frango, já não comia nada de jeito faz tempo, ele fica-se por um prato de moelas. Como pouco. Deixo-o em casa, lá para a meia-noite e vou dormir. Tenho de me lembrar de falar do muxuxo de carne do Zambézia.

 

Maputo, 10 Julho

 

DIA DE DESCANSO. Começo no “abfc”, torradinha do costume. Espero pelo Cabral. Ficámos de passar no Cabrita, que parte hoje para Portugal, com a Teresa, a Luna e a suequinha. Inxala para eles, que bem merecem depois das atribulações porque passaram. Tereza diz-me que foi ela a dar o empurrão final, que o Cabrita já tinha lançado a toalha ao ringue, quase entregando os pontos. O Cabral deixou livros e levou outros – o Cabrita é a sua biblioteca, e que biblioteca. Deixamos o Cabral na Mondeleane e fomos no tal carro branco. O carro merece aqui uma história, mas escrevo amanhã, junto à torradinha, já saciado com o café da manhã no “abfc” – café Tuga, diz o Toni. Tenho de perguntar ao Cabrita qual era o nome antigo, “porque eles andam sempre a mudar.”

Agora a propósito deste andar sempre a mudar vem-me à memória a conversa com o Cabral, ontem à noite, no Piripiri. O tema da toponímia de Maputo merecia, só por si, uma colecção de livros. A primeira impressão do recém-chegado é a de um tratado de política. Percorrer as ruas de Maputo é calcorrear a história do marxismo-leninismo, da luta contra o imperialismo, em África ou na Ásia (engraçado, agora registo que não vi nenhuma referencia a Castro, Guevara ou outros heróis da guerrilha latino-americana, será coincidência? Aposto que o mesmo não se passa em Luanda, há-que investigar). Mas, quanto ao resto, há de tudo, de Ho-chi-Min a Amilcar Cabral, e estou a falar das avenidas e ruas mais importantes. Ouvi por aí que já se pensa em mudar tudo de novo, mas os custos associados e a quebra de referencias da malha urbana já com décadas tem dissuadido esta reforma. Diz-me o Cabral que ele e um amigo, de que não registei o nome (tenho e fazer uma lista de perguntas para o Cabral antes de partir), passaram uma noite frente ao mapa de Maputo a desenhar uma proposta de toponímia que passava por ruas e avenida com nomes de animais africanos, como a girafa, a gazela, o elefante. Diz a lenda que o tal amigo mostrou o mapa a uma personalidade influente na altura, que logo a recusou: “não percebem nada de cultura africana”.

De volta ao café da manhã, no Tuga, ia eu a contar a história do carro branco do cabrita. O Capão, editor de que já falei, vendeu-o ao Cabrita, direitinho, limpinho, “motor a ronronar” e sequioso de desenvolver, diz Cabrita, mas que está paradinho, só sai ao fim-de-semana, quando sai. É que os famosos donos do carro branco, um não tem carta e a outra não gosta de guiar. O Cabrita ainda me propôs o carro mais o Gilberto para me levar ao Kruger, mas o próprio Capão lhe cortou o devaneio.
Acabo por andar nele, neste último dia da família Cabrita em solo moçambicano. Vamos às compras ao Mercado do Pau, junto à Fortaleza, na Baixa. A Fortaleza é uma agradável surpresa, a de ver que os Moçambicanos convivem bem com os símbolos do passado colonial. A dominar a praça central está a estátua de Mouzinho, equídea, dominadora, a olhar de soslaio o buffet animado que lhe rodeia as patas do cavalo. Tem também painéis de bronze a celebrar a humilhação de Gungunhana . O ambiente é francamente simpático e limpo. Decorre uma feira de artesanato, no seu último dia, com venda certificada e recibo. Compro uma cadeia de castiçais de pau preto, por 400 meticais. Já lá fora, como todos os sábados, na Feira do Pau, feira grande de artesanato, as regras são a ausência de regras. Para ilustrar o risco de se fazer um péssimo negocio vou contar a história da compra do batic para o Dados e a Madalena, prometido desde 2002, altura em que estiveram em Moçambique e me ofereceram um, que está agora na parede da sala.

Esta é a história da compra do batik no Mercado do Pau, feira de artesanato, Maputo.

Quando consigo vislumbrar um batik a meu gosto pergunto o preço. 1.900 meticais, ri, que não, patrão, podemos negociar. Nem respondi. Mais à frente encontro um em tudo semelhante. Quanto é? 900 meticais. Consigo reduzir para 750, não sem muita troca de telefonemas para o presumível dono da mercadoria para autorizar a venda. Mais à frente ainda, acabei por comprar um outro, mais pequeno, por 600. Em suma, compro dois por 1.350, muito abaixo dos 1.900 inicialmente propostos. Muito cuidado, portanto.
Dali vamos, a Teresa, o Cabrita e eu, a um outro tipo de mercado, e agora é a vez do verdadeiro choque cultural. É o grande, o novíssimo, o último grito. Todo o complexo do supermercado, praça de pizzaria e gelataria, cine Lusomundo, tudo a brilhar, tudo a fazer esquecer que estamos em África, um verdadeiro exemplo de mimetismo cultural, neste caso aplicado ao que há de pior no mundo ocidental.

Despeço-me do Cabrita e da Teresa com um gelado. Já só nos voltaremos a ver em Portugal.

Mas sábado é dia de semi-final no Mundial. Deambulo pelas ruas de Maputo, só, como de costume, até que escuto uma buzina insistente. Coincidência: a Tina Nicolau, a quem o Toni ficara de ligar para combinar as compras para o jantar. E eis que nos encontramos na Vladimir Lenine. O sol está quase a pôr-se e ela decide levar-me ao famoso Bazar do Peixe, lá para os lados da Costa do Sol. É também no caminho que conto à Tina o episódio do “Pró outro lado”, da sentinela, no primeiro dia. Ela chama-me então a atenção para um sinal que eu nunca tinha visto antes: um sinal de trânsito de proibição de circulação – de peões – no passeio; aliás não um sinal mas vários, plantados a cada cem metros. Note-se, não para proibir o atravessar da estrada, mas o do passeio, passeio presidencial.

Continuando pela orla até à Costa do Sol a noite vai caindo rapidamente, como é hábito em África, e deparo-me então com um verdadeiro espectáculo de luz, mortiça, alaranjada, a lembrar quase a luz de velas. Imagine-se uma praça típica de um mercado de peixe em Portugal; mas de noite, a abarrotar de gente, peixe fresco, marisco, os famosos camarões tigre, do Índico, tudo em claro-escuro, como que tirado de um Caravaggio, simplesmente deslumbrante.
Só odiei uma coisa: não ter trazido a puta da máquina. Mas a Tina ficou de me trazer de novo aqui. Espero fazê-lo antes de regressar a Portugal.
De volta a casa, sou eu que cozinho os camarões, “à minha maneira”, e acabamos a assistir à derrota, injusta, do Uruguai frente à Alemanha.

 

Maputo, 11 Julho

 

DOMINGO É DIA CHATO EM MAPUTO. Dia calmíssimo, a lembrar a Lisboa domingueira. A Mondeleane, avenida habitualmente sufocada de carros, barulho e poeira, parece a Almirante Reis, em Lisboa. Sento-me no abcf para o pequeno almoço e a escrita da praxe. À saída, outra coincidência: encontro o Toni. Catalão, uma voz que me chama, e lá está ele, na esplanada, e aí ficamos, a tarde toda, conversa de destino e de planos para o futuro. O Toni está virado para ficar em Maputo. Falou mesmo em pedir a nacionalidade moçambicana. Almoçamos por ali mesmo, no Tuga, bacalhau-à-Brás e bife, tudo regado com um branco fresquinho, em balde de gelo (isto é que é a globalização, versão lusa!). Lá para o fim da tarde largo-me para a Baixa. Está inóspita e feia, despovoada, uns tipos aqui e ali, longe do bulício moderno da semana, a 25 de Setembro está uma sombra de si mesma.
Até o Djambu está fechado, está tudo fechado. Só encontro um tasco aberto lá para os lados da estação. Um tasco, curto e feio, mas dá para uma 2M, média. Não tem troco, bebo outra para ajudar. Dois tipos numa mesa perguntam, com gestos largos, se preciso de água pela cabeça, para acordar. Certamente desconhecem a minha capacidade de encaixe e desatam a trocar piropos espirituosos. A menina do balcão quer saber o meu nome, Carlos, é? O meu pai também. Já temos algo em comum, observo. Ah, mas ele não tem o seu nariz, goza, ao que respondo: tá a ver, ainda tem muito para crescer, o seu pai. Risada geral. Tudo bem disposto, e lá vou, de volta a casa, Karl Marx acima.

Hoje é domingo chato, mas é também dia de final da copa do mundo, e o melhor está ainda para vir.

 

Maputo, final Mundial 2010, no Copa de Ouro, Feira Popular,11 Julho 2010
PalmadeOuro from  © Carlos Catalao on Vimeo.

 

A Tina vem-me buscar, e vamos, finalmente, conhecer a outra Tina, sujeita alta, magra, perfil engraçado; traz a irmã, mais alta ainda, e não magra. Ambas jogaram basket na selecção de Moçambique, nos anos 70, dizem. A Tina M. é médica, casada com um Italiano, viveu 30 anos em Milão. Vamos no jeep da Tina N. (Nicolau) até à Feira Popular, ao Palma de Ouro.

Grande animação. Encontramos o Nelson Cruz, gente boa, com a mulher, filho e amigos. Ficamos na mesma mesa, mesmo em frente a um LCD bem grande, para ver a final, disputadíssima, vitória da Espanha, festejada por toda a gente no recinto. Mesmo a Tina M., que é do contra, e por isso começou a torcer pela Holanda, acabou por alinhar pela Espanha.

A Tina fala o tempo todo que quer ir connosco a Inhambane, mas ninguém acredita. Vamos ver, ao fim da noite, já o radiador tinha furo e não sabia bem se podia ir. Moçambicanos, observa o Toni. A irmã é alta, grande, e muito calada, o mesmo não se pode dizer da Tina, que tem fama de refilona. Damo-nos bem, não refila comigo, até me senta ao lado dela para um papo mais civilizado, já que, aos seus olhos, sou novidade por estas bandas.
Acabamos a noite às tantas, e regresso a casa com o Toni.

 

Maputo, 12 Julho

 

Passo o dia calmo, a fazer um trabalho para o Ciência Viva, um artigo. O Toni deixou-me o portátil, e fiquei entretido, a almoçar um pacífico muxuxo no café junto à Coop.
Nada a registar neste dia a não ser uma saída, ligeira, à noite, com o Toni, para beber um café e um whisky, num sítio engraçado, logo ali, ao fim da Karl Marx, perto da casa do Toni. É um tasco dos anos 30 – se as paredes falassem deviam contar muitas histórias da antiga Lourenço Marques. Agora é um café, normal, decente, bom para a noite, para pôr a conversa em dia. Talvez volte, um dia.

 

Maputo, 13 Julho

 

Véspera da partida para a grande aventura na savana africana – o meu último dia urbano desta viagem.
Saio pela manhã, visita ao banco BCI, para fazer uma transferência de 600 dólares para a conta do Nelson Cruz, o meu companheiro de viagem nos próximos três dias. Passeio pela baixa, paro no Djambu, peço um petisco: prego às tiras, apimentado, bom, a repetir, já que são só 140 meticais, mais duas cervejinhas.

Mais à frente, estou na loja franca, junto ao DIR, na 24 de julho, cruzamento com a Rua das Flores (escapou à razia toponímica). Já me tinha encontrado aqui antes com o Cabrita, quando ele andava a tentar resolver os problemas de emigrante. Mando um sms ao Cabral.

A propósito de Cabral, merece aqui uma nota sobre um pequeno episódio de ontem. Estava eu a descansar um pouco em casa, toca o telefone: aqui Teresa Moreira de carvalho. Era a prima da Pussy, de quem até tinha trazido o telefone mas que decidira não ligar para não incomodar. Está com o Cabral. Devem ter trocado impressões sobre mim, e a Teresa terá dito: o Catalão? Conheço, amigo da minha prima. Pronto, e foi assim,o mundo é mesmo pequeno.
Entretanto, o Cabral acaba mesmo agora de me ligar. Vem-me apanhar. Será desta que vou tirar uma foto da Beatriz, a pouco fotografada viúva do maior fotógrafo moçambicano, Ricardo Rangel? Veremos. Paro a escrita por aqui.
A Teresa M. Carvalho foi casada com o irmão do Cabral!
Diz-me que é para parar no Quissico, a caminho de Inhambane. Também diz para nunca viajarmos de noite!
Olívia, ex-mulher do Cabral, aparece e dá-nos uma boleia ao Mercado do Jardim, ao fim da Mondeleane, lá para os lados do Alto Maier. Segundo o Toni, Maputo central – a cidade de cimento -, pode ser dividida em três áreas, que reflectem o poder de compra dos respectivos habitantes. Primeiro, a zona da Polana, que vai do rio, da Baixa, até à 24 de Julho. É a Maputo moderna, dos shoppings, mas também dos edifícios antigos, estação de caminho-de-ferro, Fortaleza, entre outros. É, claro, a dos apartamentos para cima de 1.500 dólares. Depois, há a zona das avenidas centrais, onde o Toni tem o seu, que ronda entre os 600 e os 1.500 dólares. Depois, há uma terceira, o Alto Maier, lá para cima, onde se podem encontrar rendas entre os 300 e os 500 dólares. Fora da Maputo central há, claro, a infinidade de bairros pobres e a Maputo rica, para os lados da Trindade e da Costa do Sol, com as suas vivendas de luxo.
Vamos então ao Alto Maier, com um mercado, especialmente de sapatos (uma verdadeira exposição, dispostos impecavelmente no passeio imundo. Compro uma mala de couro que já andava a namorar há tempos (1.500 meticais), diz-me o Cabral que é feita por gente que precisa, para uma sobrevivência digna.

MAPUTO © Carlos Catalao 2010

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